MERQUIOR
“(...) o modernismo brasileiro foi um estilo
híbrido e heterogêneo, feito da convivência ou fricção de ‘estilemas’
tipicamente ‘arte moderna’. (...) Por isso mesmo é que nosso modernismo literário
seria (...) um ‘complexo’ estilístico. Não foi por acaso que só pôde ter a
unidade de um ‘movimento’, jamais a uniformidade de uma ‘escola’. (...).”
“(...) Por outro lado, porém, mesmo
instintivamente é fácil perceber que há algo inadequado em encarar-se o
surrealismo como um ‘estilo’. (...) Quer dizer, o projeto surreal não era, em
substância, estético, mas sim de cunho, antes de tudo, existencial. (...) do
ponto de vista de suas intenções originárias, patenteadas pela maioria dos seus
ritos semióticos, o surrealismo não se queria um estilo a mais, e sim uma
autêntica ‘revolução cultural’. (...).”
“(...) e não às receitas de escola, tipo ‘escrita
automática’ (...). O vou-me-emborismo, o legado baudelaireano e rimbaudiano da ‘poesia
da partida’, encontra em Murilo um desdobramento dialético, representado por um
constante impulso de estar no mundo. (...) Em Murilo, a ruptura onírica, o
transfiguracionismo visionário possuem sempre um endereço infalivelmente
imanentista.”
“(...) ‘Murilo orienta decisivamente a mescla
estilística inerente à poesia surreal’ – a tensão, no verso, entre a visão ‘problemática’
da vida e as múltiplas referências ao reino do cotidiano e do vulgar – ‘para
uma ótica saturnal’. (...).”
“(...) Os modernismos, como é sabido, de vez
em quando gostavam de fazer pipi no colo do decoro literário. A ‘distância
clássica’ da imagística, a eufonia do ritmo na média da alta poesia vitoriana
passaram de repente a soar tão falso, que somente hoje, com um quarto de século
de permeio, recomeçamos a apreciar com isenção a ética da estética
oitocentista. Nos anos heroicos da vanguarda, isso era, naturalmente, quase
impossível, e Pound (com quem Murilo se entendeu muito bem) reclamava virtuoso
a rejeição de toda ‘Tennysoniannes of speech’. (...).”
* * * * *
Minha nota: até hoje, muitos poetas, críticos
e teóricos insistem em negar a apreciação da ética contida na estética de
outros tempos, por causa de suas estéticas, gostos, preconceitos e ideologias próprias,
esquecendo-se do conteúdo ético que não se aprende via ‘escolas’.
* * * * *
MURILO MENDES – CONHECIMENTO (em A Poesia em
Pânico – 1937)
CONHECIMENTO
A marcha das constelações me segue até no
lodo.
Estendo os braços para separar os tempos
E indico ao navio de poetas o caminho do
pânico.
Quem sou eu? A sombra ambulante de meus pais
até o primeiro homem,
Quem sou eu? Um cérebro deixado em pasto aos
bichos,
Sou a fome de mim mesmo e de todos,
Sou o alimento dos outros,
Sou o bem encarcerado e o mal que não
germina.
Sou a própria esfinge que me devora.
* * * * *
(Merquior, José Guilherme. Notas para uma
Murisloscopia; e Mendes, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Volume único. Nova
Aguilar: Rio de Janeiro: 1994)