A POESIA E O REAL
Por António Ramos Rosa[i]
1. A palavra poética e o real.
A verdadeira poesia ignora a
afirmação fácil, porque se ela é uma afirmação do que o poeta logra arrancar à
confusão e ao caos, não poderá, portanto, satisfazer-se com o mero enunciado
das certezas superficiais ou, sequer, das convicções comuns mais sinceras, se
estas não forem postas à prova desse momento em que o poeta se reencontra na ‘linha
da sombra’, como sustenta Jean Tortel. A ‘linha da sombra’ é a linha a partir
da qual a claridade poética pode surgir com a sua margem de indecisão, de
interrogação, de acaso, de aleatório e, precisamente, por isso, de liberdade.
A ruptura que o acto poético implica
é um descondicionamento do convencionalismo social, uma desancilose, e daí que,
ao distender-se, o real surja ao poeta não como já definitivamente dado, mas
como um campo total de indefinidas possibilidades; ou, antes, como a própria
possibilidade em estado de afirmação; ou, por outras palavras, a virtualidade
do real em actualização. A matéria da arte pertence fundamentalmente ao domínio
do virtual, mas a obra de arte é uma actualização real do virtual: actualiza-se
como algo real, não apenas como antecipação de um real futuro, mas como
presença absoluta e, ao mesmo tempo, única, de um momento inesgotável.
Não são as coisas, portanto, que o
poeta nos dá, mas a apresentação delas, em estrutura formal e novas relações
que a palavra poética descobre. Não por uma invenção que as funda em absoluto,
mas por um processo de equivalências livres que nos vão dando o próprio
movimento das relações com esse real da vida redescoberto.
Poderá assim se compreender, nesta perspectiva, que se veja na poesia o
real absoluto, pois que a poesia nos toca sempre como a revelação de algo, ao
mesmo tempo, misterioso e evidente. A imagem poética que não saiba criar este
movimento de correspondências será nula poeticamente.
A liberdade que hoje se oferece aos poetas, por meio da linguagem, é uma
conquista inestimável, mas que o poeta, tergiversando, pode facilmente trair. A
dignidade da palavra implica a sua liberdade, mas tal liberdade, livremente,
tem de ir ao fundo de si mesma, para além da própria palavra, até essa tal
linha de sombra, onde o real se renova e a palavra recomeça como fundamento do
real poético.
Assim, o poeta é responsável perante o mundo, pois sempre que age como
poeta cria novas relações e revoluciona a própria visão do mundo, libertando-o
de seus estereótipos. A arte literária é uma verdadeira ciência da linguagem
que tende a restituir aquele momento pré-reflexivo das coisas reveladas, de
revalorização da vida, sem qualquer sobreposição ideológica e sem a qual a
poesia não logra estabelecer qualquer criação de realidades.
[i]
ROSA, António Ramos. A poesia moderna e a interrogação do real - I. Editora
Arcádia. Lisboa: 1977.