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quarta-feira, 30 de abril de 2014

A POESIA E O REAL - ANTÓNIO RAMOS ROSA

A POESIA E O REAL


Por António Ramos Rosa[i]


1.         A palavra poética e o real.

            A verdadeira poesia ignora a afirmação fácil, porque se ela é uma afirmação do que o poeta logra arrancar à confusão e ao caos, não poderá, portanto, satisfazer-se com o mero enunciado das certezas superficiais ou, sequer, das convicções comuns mais sinceras, se estas não forem postas à prova desse momento em que o poeta se reencontra na ‘linha da sombra’, como sustenta Jean Tortel. A ‘linha da sombra’ é a linha a partir da qual a claridade poética pode surgir com a sua margem de indecisão, de interrogação, de acaso, de aleatório e, precisamente, por isso, de liberdade.

            A ruptura que o acto poético implica é um descondicionamento do convencionalismo social, uma desancilose, e daí que, ao distender-se, o real surja ao poeta não como já definitivamente dado, mas como um campo total de indefinidas possibilidades; ou, antes, como a própria possibilidade em estado de afirmação; ou, por outras palavras, a virtualidade do real em actualização. A matéria da arte pertence fundamentalmente ao domínio do virtual, mas a obra de arte é uma actualização real do virtual: actualiza-se como algo real, não apenas como antecipação de um real futuro, mas como presença absoluta e, ao mesmo tempo, única, de um momento inesgotável.

            Não são as coisas, portanto, que o poeta nos dá, mas a apresentação delas, em estrutura formal e novas relações que a palavra poética descobre. Não por uma invenção que as funda em absoluto, mas por um processo de equivalências livres que nos vão dando o próprio movimento das relações com esse real da vida redescoberto.

Poderá assim se compreender, nesta perspectiva, que se veja na poesia o real absoluto, pois que a poesia nos toca sempre como a revelação de algo, ao mesmo tempo, misterioso e evidente. A imagem poética que não saiba criar este movimento de correspondências será nula poeticamente.

A liberdade que hoje se oferece aos poetas, por meio da linguagem, é uma conquista inestimável, mas que o poeta, tergiversando, pode facilmente trair. A dignidade da palavra implica a sua liberdade, mas tal liberdade, livremente, tem de ir ao fundo de si mesma, para além da própria palavra, até essa tal linha de sombra, onde o real se renova e a palavra recomeça como fundamento do real poético.

Assim, o poeta é responsável perante o mundo, pois sempre que age como poeta cria novas relações e revoluciona a própria visão do mundo, libertando-o de seus estereótipos. A arte literária é uma verdadeira ciência da linguagem que tende a restituir aquele momento pré-reflexivo das coisas reveladas, de revalorização da vida, sem qualquer sobreposição ideológica e sem a qual a poesia não logra estabelecer qualquer criação de realidades.




[i] ROSA, António Ramos. A poesia moderna e a interrogação do real - I. Editora Arcádia. Lisboa: 1977.