BLOG COM TEXTOS LITERÁRIOS PARA ENTRETENIMENTO


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terça-feira, 6 de maio de 2014

A POESIA E O REAL - António Ramos Rosa 4

4. Matéria e forma na criação artística.

Por António Ramos Rosa[i]


Será possível estabelecer uma demarcação nítida entre matéria (no sentido que lhe confere Jeanne Hersch) e forma? Se, por um lado, não é lícito duvidar de uma suposta polaridade ou, por outros termos, da oposição dialética entre dado e criação, por outro, é extremamente problemático determinar onde acaba a matéria e principia a forma. Porque, afinal, o dado puro, virgem, ou realizável, qualquer dado que seja isento da marca humana é indeterminável. Note-se, em primeiro lugar, que a indeterminabilidade da linha divisória entre matéria e forma já é, já de si, um sinal da liberdade humana.

Se fosse possível demarcar de uma vez para sempre a tal ‘linha divisória’, não seria possível qualquer atividade investigadora, teorização, crítica – tudo estaria prescrito, (...), pois a própria categoria do possível teria sido eliminada. Todavia, da dificuldade – ou talvez mesmo da impossibilidade de separar a matéria da forma, o dado objetivo da criação ou da teoria e crítica – não se deve inferir a inexistência da criação. Sem o ‘não-eu’ não se depreenderia a atividade e a luta do eu no processo criador, aliás, no processo total da realidade humana. Em vários domínios, inclusive o da arte, haveria a transformação de um dado, uma matéria em, cujo objeto, uma criação se encarna autonomamente no próprio dado e, por conseguinte, só nele a forma existe. A forma “é”. (...)

A mobilidade da linha de demarcação entre matéria e forma, que é um índice capital da liberdade humana, responderá cada qual de maneira mais ou menos justa, inclusive aos arbitrários de plantão que negam, por consequência, a própria liberdade da condição humana; e que provam sua negação, praticamente, por este próprio ato. Note-se: a impossibilidade teórica de negar a indeterminação essencial dessa linha demarcatória é essencial da realidade humana.

Seja qual for uma posição ideológica que se assuma, o certo é que não se pode negar a impossibilidade de separação entre matéria e forma e, quando se pretende ignorá-la, ou escondê-la, surge arbitrariedade dogmática – o peso bruto e irrevogável da matéria, da determinação, ou, pelo contrário, o predomínio  absoluto do espírito, a soberania de um artista transcendental que domina todas as contingências, que desfaz todas as opacidades – como se o sistema literário não fosse uma tríade inseparável, distinta e indeterminável.




[i] ROSA, António Ramos. A poesia moderna e a interrogação do real - I. Editora Arcádia. Lisboa: 1977.

sábado, 3 de maio de 2014

A POESIA E O REAL - ANTÓNIO RAMOS ROSA 3

3. A palavra poética ou palavra no poema.

Por António Ramos Rosa[i]

Afirmava Reverdy que a imagem poética deveria ser simultaneamente justa e absurda. Uma imagem justa é um contrassenso, uma impossibilidade. A imagem poética supõe a ausência do objeto real e só poderia estabelecer com este uma relação através da mesma ausência. Tal é a distância que se traduz, na linguagem, pela distância entre o significante e o sentido. (...) A liberdade da linguagem poética (obscuridade, arbitrariedade, abertura são termos que se confundem e se equivalem como outras tantas referências a esse espaço da linguagem) não pode ser entendida senão a partir desse hiato essencial; não como uma libertação em relação a um constrangimento formal, mas, sim, como uma queda de se sonhar na própria liberdade, com o reconhecimento, inclusive, dos vazios da linguagem.

Como diz Jean-Pierre Richard, o hiato, entre a palavra e o objeto, na poesia, poderia encontrar uma tradução (mas não necessariamente) no hiato entre o significante e o sentido. Mediante essa distância supostamente instransponível, entre o significante e o sentido, cria-se um próprio espaço poético, sem anular o poema, porque da própria ausência de espaço, o poema geraria, per si, sua equivalências próprias – levando a palavra, no poema, a travar um diálogo de realidade (a conversão de ausência em presença), de um vazio em uma plenitude instantânea. Não, necessariamente, porque o hiato entre significante e sentido não dá razão à existência da palavra poética: a palavra poética, ou até mesmo os fonemas de um poema, retorna a si mesma, pela plenitude de um significante qualquer (e.g.; poema gráfico), encontrando e se identificando, vencendo a arbitrariedade dita ‘significante-sentido’, por outra arbitrariedade da arte poética, esta de sinal contrário, porque se realiza no sentido da sobreposição entre a relação significante e sentido.




[i] ROSA, António Ramos. A poesia moderna e a interrogação do real - I. Editora Arcádia. Lisboa: 1977.

A POESIA E O REAL - ANTÓNIO RAMOS ROSA 2

Por António Ramos Rosa[i]

2 – O complexo tema da comunicação poética.

(...) Mas o que comunica a palavra poética? (...) Muitos daqueles que, em nome da comunicação, condenam certos poetas por ininteligíveis, ignoram a complexidade que tal pergunta envolve. Nem sequer atendem ao facto de que a poesia sempre teve seu modo específico de comunicar; e que assim parece legítimo inferir que as poesias, por muitas diversas e contraditórias que as sejam, poderiam ser um ‘ser’, ou, pelo menos, um modo de ‘ser’. (...)

A palavra poética é desintegradora e integrante. Indetermina (ou tal ‘inexprimível’, como diria Barthes) os sentidos, não para destruí-los, mas criar novas realidades, que representem uma nova maneira de ser ou de estar no mundo. Não é, na verdade, contra a comunicação que a poesia investe, quando se adensa e se indetermina, quando desintegra para mais uma autêntica e profunda transformação, quando se enriquece e se estabelece com novos sentidos, pois que assim segue o seu próprio destino inerente à sua natureza linguística e à função poética que nesta se expressa; ou seja, a da contínua translação significativa a que submete a arte poética.

Exigir-lhe, pois, a clareza conceptual, a univocidade, o primado da denotação sobre a conotação é, sem dúvida, mata-la. (...) Comunicação não quer dizer na poesia [uma] inteligibilidade vazia. (...) Comunicação não quer dizer na poesia a anulação da complexidade, ambiguidade, obscuridade constitutivas de todo o acto real, de todo acto de sua existência. A condição humana não é transparente por si mesma e, por isso, nem o conhecimento científico, nem qualquer concepção do mundo ou ideologia, por mais totalizadora que seja, teria o direito de reivindicar uma definição de poesia – não fosse uma perpétua e constante redefinição do homem que põe em causa as demais redefinições.







[i] ROSA, António Ramos. A poesia moderna e a interrogação do real - I. Editora Arcádia. Lisboa: 1977.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

A POESIA E O REAL - ANTÓNIO RAMOS ROSA

A POESIA E O REAL


Por António Ramos Rosa[i]


1.         A palavra poética e o real.

            A verdadeira poesia ignora a afirmação fácil, porque se ela é uma afirmação do que o poeta logra arrancar à confusão e ao caos, não poderá, portanto, satisfazer-se com o mero enunciado das certezas superficiais ou, sequer, das convicções comuns mais sinceras, se estas não forem postas à prova desse momento em que o poeta se reencontra na ‘linha da sombra’, como sustenta Jean Tortel. A ‘linha da sombra’ é a linha a partir da qual a claridade poética pode surgir com a sua margem de indecisão, de interrogação, de acaso, de aleatório e, precisamente, por isso, de liberdade.

            A ruptura que o acto poético implica é um descondicionamento do convencionalismo social, uma desancilose, e daí que, ao distender-se, o real surja ao poeta não como já definitivamente dado, mas como um campo total de indefinidas possibilidades; ou, antes, como a própria possibilidade em estado de afirmação; ou, por outras palavras, a virtualidade do real em actualização. A matéria da arte pertence fundamentalmente ao domínio do virtual, mas a obra de arte é uma actualização real do virtual: actualiza-se como algo real, não apenas como antecipação de um real futuro, mas como presença absoluta e, ao mesmo tempo, única, de um momento inesgotável.

            Não são as coisas, portanto, que o poeta nos dá, mas a apresentação delas, em estrutura formal e novas relações que a palavra poética descobre. Não por uma invenção que as funda em absoluto, mas por um processo de equivalências livres que nos vão dando o próprio movimento das relações com esse real da vida redescoberto.

Poderá assim se compreender, nesta perspectiva, que se veja na poesia o real absoluto, pois que a poesia nos toca sempre como a revelação de algo, ao mesmo tempo, misterioso e evidente. A imagem poética que não saiba criar este movimento de correspondências será nula poeticamente.

A liberdade que hoje se oferece aos poetas, por meio da linguagem, é uma conquista inestimável, mas que o poeta, tergiversando, pode facilmente trair. A dignidade da palavra implica a sua liberdade, mas tal liberdade, livremente, tem de ir ao fundo de si mesma, para além da própria palavra, até essa tal linha de sombra, onde o real se renova e a palavra recomeça como fundamento do real poético.

Assim, o poeta é responsável perante o mundo, pois sempre que age como poeta cria novas relações e revoluciona a própria visão do mundo, libertando-o de seus estereótipos. A arte literária é uma verdadeira ciência da linguagem que tende a restituir aquele momento pré-reflexivo das coisas reveladas, de revalorização da vida, sem qualquer sobreposição ideológica e sem a qual a poesia não logra estabelecer qualquer criação de realidades.




[i] ROSA, António Ramos. A poesia moderna e a interrogação do real - I. Editora Arcádia. Lisboa: 1977.